quinta-feira, julho 31, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 85 E 86


85 – Trago as grades dentro de mim.
Apego é sinônimo de infelicidade, pois reter qualquer coisa implica necessariamente sofrimento.
Se nos apegarmos a alguém – ao nosso companheiro, por exemplo –, e não desgrudarmos dele, teremos sempre medo de perdê-lo, sentiremos ciúme quando ele falar com alguém e lhe sorrir. Estaremos sempre inseguros.
Mas podemos sentir amor por uma pessoa sem nos apegarmos a ela. Amar alguém não significa que a pessoa amada nos pertença e que podem tirá-la de nós.
Assim também acontece com os bens materiais. Quando nos apegamos a objetos, temos medo de perdê-los. Não somos livres, tememos, sofremos. Se conseguirmos nos livrar dos apegos, se formos capazes de viver sem nos agarrarmos a nada, deixaremos de sentir medo e o ciúme desaparecerá. Deixaremos de nos preocupar em acumular coisas desnecessárias, trocaremos o verbo “ter” pelo verbo “amar”. Conseguiremos experimentar amor por nosso parceiro sem que ele se sinta numa prisão.
Quando nos propusermos a viver assim, deixaremos de ter grades em nosso interior.

86 – A dor é o elemento positivo deste mundo. É, na verdade, o único vínculo entre este mundo e o positivo em si.
O padre jesuíta Anthony de Mello escreveu diversos livros que ensinam como ver o lado positivo da dor, já que, como ele mesmo afirma, as experiências traumáticas chegam irremediavelmente a todo ser humano. Ninguém está livre delas. O que pode mudar tudo é a maneira como as enfrentamos. Há pessoas que convertem as experiências difíceis em sofrimento, mas há outras que as transformam em aprendizado.
Buda disse em certa ocasião: “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional.” Isso significa que a dor sempre estará presente em nossa vida, pois sofremos acidentes, vivemos perdas, decepções… O que muda de uma pessoa para outra é a interpretação que se faz desses acontecimentos.
A dor positiva de que fala Kafka não é o sofrimento, mas o aprendizado. Aquilo que dói mais profundamente nos mostra o valor da vida e aumenta nossas perspectivas, o que nos faz entendê-la em toda a sua profundidade.

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 83 E 84


83 – A mediação da serpente foi necessária: o mal pode seduzir o homem, mas não pode se transformar em homem.
Um conto popular narra a história de um homem que caminhava havia dias sob o sol quente do verão quando foi assaltado. Os ladrões levaram as poucas moedas que tinha e a comida que restava em sua bolsa de couro.
Ele continuou a caminhar, na esperança de encontrar alguém que o ajudasse. Quando a fome começava a cravar as unhas no seu estômago, divisou ao longe uma macieira. Aproximou-se e observou que havia apenas um fruto maduro. Quando estava prestes a pegar a maçã, apareceu um velho pastor.
– Essa fruta lhe custará muito caro – disse ao caminhante. – Seu dono lhe dedicou todo o cuidado durante seu amadurecimento, pois a última maçã madura da árvore é para alguém muito especial.
O homem respondeu que tinha fome e que havia sido roubado.
– Pegar esta maçã o tornaria um ladrão, tal como aqueles que o roubaram. Acha que vale a pena pagar esse preço?
Pesaroso, o homem compreendeu e seguiu seu caminho. O velho, então, o chamou:
– Espere! Esqueceu sua maçã.
O caminhante o olhou com incredulidade, e o pastor esclareceu:
– Você é a pessoa especial para a qual esta maçã cresceu, aquela que não se atreveria a arrebatá-la.

84 – As diferentes formas de desespero são etapas distintas de um mesmo caminho.
A esperança é um estado de espírito que devemos cultivar nesses tempos de dificuldades e confusão.
O pensador espanhol Miguel de Unamuno disse que sempre há um motivo para se ter esperança, “mesmo estando nas mais obscuras aflições, pois das nuvens negras cai água limpa e fecunda”.
Sobre este assunto, o dramaturgo belga Maurice Maeterlinck fez uma interessante reflexão: “A desesperança se baseia no que sabemos, que é nada, enquanto a esperança se baseia no que não sabemos, que é tudo.”
Quando nos desesperamos, sentimo-nos vazios, sem ideias nem planos para seguir adiante. A esperança, por outro lado, logo arranja soluções para a situação em que nos encontramos.
Mesmo que seja só por isso, vale a pena acender uma luz na escuridão. 

quarta-feira, julho 30, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 81 E 82


81 – O conhecimento nós já temos. Mas qualquer um que o procure é suspeito de estar contra ele.
Conhecimento nem sempre equivale à sabedoria; às vezes significa exatamente o contrário. A fixação por acumular conhecimento pode até obscurecer nosso olhar sobre o mundo.
Para os pensadores orientais, é imprescindível “desaprender”, livrar-se de muitos conhecimentos adquiridos em forma de preconceitos e lugares-comuns, para olhar a realidade sem os filtros que a distorcem.
O pensador americano Will Durant dizia sobre a diferença entre sabedoria e conhecimento: “O conhecimento é poder, mas só a sabedoria é liberdade.” Dois séculos antes, Immanuel Kant afirmava que “A ciência é conhecimento organizado, mas a sabedoria é vida organizada”.
O que devemos desaprender para alcançar a sabedoria?
• As ideias preconcebidas sobre as pessoas e as coisas.
• As previsões sobre o que alguém fará ou sobre o que acontecerá em determinada situação.
• As opiniões de terceiros que não nos deixam expressar naturalmente nossa própria opinião.
• A falsa crença de que já sabemos tudo o que é necessário sobre qualquer aspecto da vida.
Se abandonarmos todos esses filtros, a clareza 
e a sabedoria chegarão por si sós.

82 – Não se desespere, nem mesmo pelo fato de que não se desespera.
Especialista em compor ambientes opressivos e desprovidos de esperança, Kafka descreveu esta cena em um de seus cadernos:
Encontramo-nos na situação dos viajantes de um trem que para por causa de um acidente e, no ponto em que a luz do início do túnel já não pode ser vista e a luz do fim do túnel é tão pequena e fraca que o olhar deve buscá-la continuamente, perdendo-a vez ou outra, até que chega um momento em que a luz do início e a do fim se convertem em algo incerto.
Esta situação de desesperança – quando perdemos o referencial de onde viemos e tampouco vemos o final – é o que nos assalta nos momentos de crise e dificuldades.
Que fazer quando não vemos a luz no fim do túnel?
O tcheco Vaclav Havel, ganhador do prêmio Nobel da Paz, foi perseguido e preso pelo regime comunista e, décadas depois, chegou à Presidência de seu país. Ele refletia assim sobre esta questão:
Não é no momento da mais profunda dúvida que nascem as novas certezas?
Nesse mesmo sentido, talvez a desesperança seja o adubo que alimenta a esperança humana; talvez nunca experimentássemos o sentido da vida se antes não tivéssemos experimentado seu absurdo. 

terça-feira, julho 29, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 79 E 80


79 – Uma gaiola foi em busca de um pássaro.
Certa manhã, uma gaiola acordou e percebeu que, por distração, deixara a porta aberta e o pintassilgo que vivia nela tinha desaparecido. A gaiola sentia um vazio enorme em suas entranhas, e a solidão a entristeceu. Sentia saudade do canto do passarinho.
Na manhã seguinte, ao ver que aquele mal-agradecido não voltava, começou a se mexer para distribuir as sementes e migalhas de pão duro que havia em seu interior e, assim, espalhar o cheiro da comida.
A primeira a chegar foi uma grande gaivota. Ela começou a espiar o chão da gaiola cheio de comida espalhada. A gaiola, ao ver aquele pássaro desagradável, abriu e fechou a porta bruscamente, dando dois safanões na gaivota e espantando-a.
Logo depois apareceu um periquito, que desprezou o alimento porque preferia pão macio.
Depois foi a vez de um pardal. O passarinho entrou na gaiola e, quando a porta se fechou e ele percebeu que estava preso, começou a piar lastimosamente. A gaiola abriu a porta para deixá-lo escapar, pois se lembrou de que os pardais morrem de tristeza ao se verem privados da liberdade.
O pardal, agradecido, fez um acordo com a gaiola: viria todos os dias, junto com os amigos, para lhe fazer companhia, e se refugiaria nela nos dias de chuva.
A gaiola nunca mais ficou sozinha e descobriu que o amor consiste em respeitar a liberdade dos demais...
80 – Via-me forçado a me esquentar com um fogo que eu ainda não havia começado a buscar.
O que significa esta frase do genial escritor de Praga? Esse fogo que já esquenta sem ainda ter sido encontrado nos remete a um aforismo anônimo que diz: “Façamos como se fôssemos e acabaremos sendo.”
O fogo ainda não está presente, mas a simples perspectiva de encontrá-lo pressupõe um calor para a alma, pois o brilho daquilo que vamos buscar nos guia.
Da mesma forma, quando elaboramos projetos que dão sentido à nossa vida, o mero fato de evocá-los com o pensamento já nos remete à chama que dissipa o frio e as trevas de qualquer dificuldade. Essa é a situação que experimentamos quando…
• Temos uma ideia que nos faz sonhar e estabelecemos pequenos objetivos que nos levem a ela.
• Após uma separação, percebemos como deve ser a pessoa que combine conosco.
• Buscamos um trabalho que se harmonize com nossa vocação e nosso talento inato.
• Passamos por um mau momento, mas tomamos consciência de que é um prelúdio dos bons tempos que estão por vir.


domingo, julho 27, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 77 e 78


77 – Não há canção mais pura que a que se canta nas profundezas do inferno.
Em muitos processos vitais a que nos vemos expostos, como uma doença ou a deterioração de um relacionamento, frequentemente precisamos chegar ao fundo do poço para percebermos o que falhou e começarmos de novo.
O inferno a que Kafka se refere é, portanto, o espaço mental em que se consomem nossos erros e que nos permite ressurgir das nossas cinzas, como uma fênix.
Grandes projetos pessoais surgiram após uma longa convalescença, assim como uma experiência profissional malsucedida pode nos ajudar a descobrir nossa verdadeira vocação.
Esta é a boa notícia acerca do fracasso e do sofrimento: uma vez que tenhamos chegado ao fundo, temos total liberdade para subir a altitudes que, de outra forma, não poderíamos contemplar. É uma questão de aproveitar, olhando para o futuro imediato, nossa breve passagem pelo inferno.

78 – Enquanto você tiver alimento na boca, todas as perguntas estarão esclarecidas.
Um conto tradicional zen fala de um monge que pediu a um venerável mestre chamado Joshu:
– Acabo de entrar neste mosteiro. Por favor, ensine-me.
Joshu perguntou:
– Já comeu seu refogado de arroz?
O monge respondeu:
– Comi.
Joshu concluiu:
– Então é melhor você lavar seu prato.

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 75 E 76


75 – Apenas quando estou profundamente melancólico é que tenho a sensação de que sou eu mesmo.
Já falamos da tristeza; agora abordaremos a melancolia, que está mais relacionada com a criação ou a percepção de obras artísticas. No ensaio Contra a felicidade, o professor de literatura E.G. Wilson diferencia a depressão da melancolia desta forma:
O que separa as duas é o grau de atividade. Ambas são formas de tristeza mais ou menos crônica que conduzem a uma incomodidade duradoura com o estado das coisas […]. Em face dessa incomodidade, a depressão causa apatia, uma letargia que se aproxima da paralisia absoluta, uma incapacidade de sentir grande coisa a propósito de qualquer coisa em um sentido ou em outro. A melancolia, ao contrário, gera em relação à mesma ansiedade um sentimento profundo, uma turbulência no coração que desemboca num questionamento ativo do presente, num desejo perpétuo de criar novas formas de ser e de ver.
Em estado de melancolia foram criadas grandes sinfonias, poemas comoventes e pinturas imortais.
Mesmo para os que não canalizam a emoção através da arte, a melancolia é uma oportunidade de olharmos no fundo de nós mesmos, onde, como algas no solo marinho, se agitam os sentimentos mais puros e delicados que nos tornam humanos.

76 – O mal é aquilo que nos distrai
Berto Pena, especialista em produtividade e em gestão de pessoas, mostra em seu site que as distrações digitais – e-mail, redes sociais, SMS, etc. – podem ser as principais responsáveis por nossa insatisfação no trabalho e nosso baixo rendimento.
Para nos protegermos da enxurrada de estímulos que nos esgotam e nos tornam ineficientes, ele recomenda que criemos um bloqueio mental que impeça a entrada dessas distrações:
• Feche o programa de e-mail e qualquer notificador de novas mensagens.
• Nada de mensagens instantâneas, chats nem tweets. Você necessita do tempo real para trabalhar.
• Feche todos os aplicativos que não tenham a ver com o que você vai fazer agora.
• Se precisar buscar informações na internet, faça-o antes de começar a tarefa.
• Se o seu aplicativo permite, trabalhe com a tela cheia.
• Ponha o celular no modo silencioso e com o visor virado para baixo.
Com essas medidas simples, conseguimos reduzir a ansiedade e passamos a concentrar de maneira mais eficaz nossa energia mental.

sexta-feira, julho 25, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 73 e 74



73 – Não somos culpados só porque comemos da árvore do conhecimento, mas também porque não comemos da árvore da vida.
Se pudesse viver novamente minha vida, da próxima vez cometeria mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais bobo do que fui, levaria muito poucas coisas a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, faria mais viagens, contemplaria mais entardeceres, subiria
mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares aonde nunca fui, comeria mais sorvete e menos verduras, teria
mais problemas reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e prolificamente cada minuto de sua vida; é claro que tive momentos de alegria.
Mas se pudesse voltar atrás tentaria ter somente bons momentos.
Se por acaso ainda não o sabem, a vida é feita disso, só de momentos; não percas o agora.
Eu era um desses que nunca iam a lugar algum sem termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas.
Se pudesse voltar a viver, viajaria menos carregado.
Se pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no início da primavera e continuaria assim até acabar o outono.
Daria mais voltas de carrossel, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez a vida pela frente.
Mas já tenho 85 anos e sei que estou morrendo.
Nadine Stair

 74 – Os beijos escritos nunca chegam ao destino: são bebidos pelos fantasmas do caminho.
Conserva-se muito do material epistolar de Kafka, e destacam-se principalmente as Cartas a Milena as Cartas a Felice, enquanto a Carta ao pai, por sua profundidade e extensão – mais de quarenta páginas –, transcenderia o que se entende por carta.
Franz Kafka escreveu ao pai em 1919, reprovando seu mau comportamento. Ele entregou a carta à mãe, para que ela mesma desse ao marido. Mas ela leu a carta e negou-se a entregá-la, devolvendo-a ao filho. A carta foi publicada postumamente em 1952.
Voltando às cartas mais breves, é interessante esta reflexão de Kafka sobre elas:
Escrever cartas é comunicar-se com fantasmas, não só com o fantasma do receptor, mas com o próprio, que emerge dentre as linhas que estão sendo escritas... É uma pena que o correio eletrônico tenha praticamente apagado da face da Terra esta forma de comunicação, mas até o e-mail nos permite mandar mensagens a nós mesmos para que emerja o próprio fantasma e possamos nos entender melhor.

quinta-feira, julho 24, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 71 E 72



71 – Só tenho um sentimento verdadeiro de mim mesmo quando me sinto insuportavelmente triste.
Não se deve confundir a depressão, que pode ter causa física, com a tristeza, uma reação natural produzida quando sofremos uma perda ou enfrentamos alguma dificuldade.
A tristeza tem alguns aspectos muito valiosos:
• Aumenta nossa capacidade de empatia, já que nos deixa mais solidários com os que estão passando por um momento difícil como o nosso.
• Faz com que amemos mais aquilo que perdemos, e, portanto, multiplica nossa sensibilidade.
• Aproxima-nos das pessoas que nos cercam, pois quando estamos tristes resistimos menos a pedir ajuda e nos tornamos mais gratos.
A menos que seja uma indicação médica, a tristeza jamais deve ser combatida com remédios, já que, além de ser uma mensagem – que assinala que algo não vai bem conosco –, é um caminho que temos de percorrer para chegar à felicidade, que não teria sentido se não existisse seu sentimento oposto. Desde que não se prolongue demais e não nos leve à autocomiseração, uma dose de tristeza também é bem-vinda.


72 – A liberdade, tal como nos é possível tê-la atualmente, é uma planta bem frágil. Mas de qualquer forma é liberdade, de qualquer forma é um patrimônio.
Franz Kafka disse em um de seus escritos que o ser humano tem livre arbítrio, entre outras coisas, porque “pode escolher seu caminho nesta vida e sua maneira de percorrê-lo”.
Esta ideia contradiz um sentimento que geralmente temos: o de que não podemos fazer nada para mudar nosso destino. Sobre esse assunto, vejamos mais a fundo o que quis dizer o autor de A metamorfose:
• Escolher o próprio caminho. Ou seja, encontrar um sentido em nossa vida que nos dê significado e valor. Mas… o que acontece com as pessoas que não descobrem qual é a sua missão? Viktor Frankl tinha uma resposta clara para isso: “Se você não sabe qual é sua missão na vida, já tem uma: encontrá-la.”
• Escolher a maneira de percorrê-lo. Há muitas maneiras de viver: devagar, com pressa, sozinho ou acompanhado, com grandes metas ou pequenos prazeres, com amargura ou agradecimento. Nós decidimos. Afinal, como dizia Cervantes, “É mais importante a viagem do que a pousada”.

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 69 E 70


69 – Cronos, o mais honesto dos pais, devorou seus filhos.
Na mitologia grega, Cronos era o deus do tempo, das idades e do Zodíaco. Era um deus incorpóreo, que criara a si mesmo no início dos tempos.
Seu correspondente na mitologia romana é Saturno, retratado no célebre – e horripilante – quadro de Goya.
Cronos sabia que estava condenado a ser destronado por um de seus filhos. Por essa razão, comia sua prole assim que nascia. Contudo sua esposa, Reia, certa vez conseguiu enganá-lo, dando a ele uma pedra envolta em tecidos. Cronos caiu na armadilha, e com isso Zeus se salvou. Zeus foi criado em segredo por coribantes e ninfas. E, para que o pai devorador não o descobrisse, cada vez que Zeus chorava os coribantes provocavam alvoroço junto ao leito do menino para que não se ouvisse seu choro. Vejamos qual é o ensinamento no mito de Cronos ou Saturno: o tempo nos devora, e por isso devemos aproveitá-lo ao máximo. Cada ação valiosa que realizamos no dia a dia é uma pedra na boca do velho deus, pois o tempo só passa inutilmente para aqueles que querem perdê-lo.

70 – Não deixam de ter razão os movimentos espirituais revolucionários que questionam a relevância do anterior, já que, de fato, ainda não aconteceu nada.
É preciso fazer muita coisa ainda:
varrer o quintal, regar as margaridas,
sacudir as asas e pintá-las de novo
com as cores que nos empresta o dia.
Cantar ao som do violão
e lançar ao vento as sementes
e aconchegar num altar secreto
as novas lições que nos reserva o dia.
É preciso fazer muitas coisas;
retomar a canção velha e perdida,
beber suas águas, caminhar por sua terra
enquanto sabemos que ainda é nosso o dia.
E aprisionar a sombra
(ela sofre terríveis pesadelos),
pois é nostálgica e cheia de loucuras,
e nos torna trágicos em pleno dia.
É preciso fazer muitas coisas!
Abrir o sol, levantar nossas cortinas,
que já teremos tempo suficiente
de beber sombras quando finda o dia.
Matilde Casazola

quarta-feira, julho 23, 2014

KAFKA PARA SOBRECARREGADOS - DE ALLAN PERCY - PARTE 67 E 68



67 – O amor é um drama cheio de contradições.
A vida sentimental de Kafka foi um compêndio de medos, relacionamentos a distância e mudanças súbitas de opinião.
Talvez por isso ele fosse um assíduo visitante dos prostíbulos, como explica em um de seus escritos pessoais:
Tenho tanta necessidade de encontrar alguém que me toque amistosamente e nada mais que ontem fui a um hotel com uma prostituta. Ainda que seja demasiado velha para se deixar levar pela melancolia, dói-lhe, por mais que não a surpreenda, que os homens não tratem as prostitutas com tanta delicadeza quanto tratam suas namoradas. Não a consolei, já que ela tampouco me consolou.
Este fragmento amargurado nos serve para enumerar as três principais razões pelas quais as relações amorosas fracassam:
• Cada um dos parceiros procura algo diferente (por exemplo: um busca estabilidade, e o outro, aventura).
• Um tenta mudar ou moldar o outro a seu bel-prazer.
• Ainda que as relações nunca sejam equânimes, há um grande desnível entre o esforço empreendido por cada parceiro.

68 – Deus nos dá nozes, mas não as abre.
Ao que parece, a imagem da noz sendo quebrada é recorrente em Kafka, como se pode ver em uma de suas reflexões:
Quebrar uma noz não é de fato uma arte, e por consequência ninguém se atreveria a reunir um auditório para entretê-lo com isso, porque senão já não se trataria meramente de quebrar nozes.
De que se trataria, então? Basicamente de uma arte de viver.
As nozes são, em essência, as possibilidades. Elas estão por toda parte, mas só alguns sabem aproveitá-las. Todo mundo caminha sob uma imensa nogueira da qual os frutos que pendem são oportunidades por se abrir.
Quando contemplamos as nozes, podemos adotar diferentes atitudes:
• Proativa. Quebramos a noz – exploramos a nova possibilidade – para ter acesso ao fruto.
• Passiva. Esperamos que outro a quebre, de modo que nos convertemos em espectadores das possibilidades alheias.
• Hesitante. Há tantas nozes diferentes na árvore que ficamos indecisos sobre qual devemos pegar.
Cabe ao leitor decidir qual das três atitudes prefere adotar diante das nozes/possibilidades da vida.